Desde a Revolução Francesa, ou seja, do capitalismo como forma de produção e reprodução da vida, economicamente e politicamente dominante, o vocábulo mérito, como sinônimo de merecimento, destoa da definição dos romanos e gregos, inclusive na dimensão conceitual. A acepção de mérito no mundo do trabalho, na contemporaneidade, é tida como sinônimo de desempenho individual; como manifestação individual, ou mesmo coletiva, que diferencia os indivíduos, ou grupos, sua forma de produzir, seja manual ou intelectual, material ou imaterial. Diferença essa posta em evidência ao ser recompensada monetariamente, ou não, após aferição do mérito de cada um. Essa aferição do mérito nos é muito conhecida, por exemplo, nos exames vestibulares e nos concursos públicos ou de promoção, onde se submete o conjunto a avaliações para apuração do mérito e das diferenças, numa acirrada competição de todos contra todos.
Essa pequena observação sobre mérito se faz necessária, já que na última reunião da Comissão Permanente de Negociação - CPN (17/09/13), os representantes do governo, para sustentar a tese de que não tem interesse em fazer uma promoção geral automática, o que repararia parte do prejuízo por não ter procedido 6 certames de promoção, argumentaram que a promoção automática fere o princípio do mérito, da meritocracia instituída na Prefeitura de Guarulhos. Como a defesa não teve lastro no cinismo, corrente filosófica de pensamento mais refinado, mas sim no terreno da opinião (não no terreno dos incautos), do sofisma, onde a mentira se passa por verdade ou vice versa (corrente de pensamento que Sócrates e Platão combateram de frente e sem pestanejar, terreno onde a justiça é a conveniência do mais forte e atualmente lar do darwinismo social), devemos enfrentá-los na prática e na teoria.
No livro A República, Platão defende que a melhor forma de governo é aquela fundada em princípios meritórios, pois os governantes que chegam ao poder por essa forma são os mais justos. A noção antiga de virtude do latim ou areté do grego, é toda a forma de mérito individual ou de excelência, em qualquer atividade. Significa que o mérito é visto como um aval para a recompensa individual, mas não com o caráter econômico, pecuniário, e sim moral. A palavra mérito, do latim meritum, derivado do verbo mereo (merecer, ganhar), era atribuído a uma pessoa, na antiguidade e mesmo na modernidade, cujo ato ou atividade foram reconhecidos, a partir de um julgamento moral, merecedor de reverência, destaque, reconhecimento ou de gratidão. Assim ter mérito significava, dessa forma, ser digno de reconhecimento. É o fazer algo de bom, além dos padrões aceitos, sem objetivar vantagens, remuneração. O reconhecimento se apresentava em forma de honraria, com concessão de medalhas ou diplomas.
Quando os membros patronais da CPN afirmaram que a promoção automática proposta pela Comissão dos Servidores Estatutários fere o princípio do mérito é uma verdade, como também é mais verdade que deixaram de fazer 6 promoções. Mas confundem a meritocracia antiga com a competição weberiana, com a ideologia meritocrática, com o darwinismo social, do cada qual para si. O modelo de promoção adotado pela prefeitura de Guarulhos, oriundo da gestão Papotto, é a mesma que Hobbes entendia ter antecedido a vivência em sociedade, a de que o homem é o lobo do próprio homem, ou seja, a de que em estado de natureza, todos lutavam contra todos.
A ideia contemporânea desse pensamento, a de que ainda o homem é o lobo do próprio homem, é o neoliberalismo, pensamento econômico que tem fundamentação teórica em Friedman, Hayek e Mises. Tal pensamento econômico se opõe a solidariedade, defendendo o indivíduo como o mais importante. Dessa forma, se opõe a qualquer participação do Estado na economia, a ideia de do Estado mínimo, inclusive na saúde e educação.
Esse pensamento econômico foi implementado no Chile de Pinochet, após o golpe militar de 1973, com o nome de O Ladrilho, executado por um grupo de economistas chamados de Chicago Boys, pós-graduados na Universidade de Chicago. Essa experiência serviu de laboratório, inclusive foi implementado na Inglaterra de Margaret Thatcher que, em companhia com Ronald Reagan, impôs ao mundo esse modelo.
No Brasil Collor é o protagonista desse modelo. Quem não se lembra do Estado brasileiro sendo representado por um elefante molenga, ou a da carroça puxada por burro e guiada por um comprador de sucatas, mas falando ao celular, em publicidade governamental na qual se defendia a privatização como salvação do mundo? O primeiro representava o atraso, o segundo a modernidade...
“O mundo não deve nada a ninguém” Margareth Tatcher e Ronald Reagan ao combaterem o Estado do bem-estar social e a atribuição de responsabilidade coletiva pelos destinos dos menos favorecidos e, que cada um deve receber na mesma proporção de seu próprio esforço e capacidade. Essas ideologias reafirmaram o desempenho como o único critério legítimo e desejável de ordenação social das sociedades modernas. Eles afirmavam que o Estado de bem-estar criou um homem reativo, acomodado, esperando a ação do Estado e da sociedade a solução de seus problemas, despreocupado de onde vem o seu salário. Esse tipo social representa a antítese do personagem que deve encarnar os princípios da meritocracia: autônomo, competitivo, empreendedor, criativo, esforçado, tendo o trabalho como valor central de sua existência, o self-made man por excelência do credo americano.’
Consulta
BARBOSA, Lívia. Igualdade e meritocracia: a ética do desempenho nas sociedades modernas. Rio de Janeiro: FGV, 1999.